quarta-feira, 29 de julho de 2009

História dos "Sapatos Mais Lindos do Mundo"

HISTÓRIA DOS “SAPATOS MAIS LINDOS DO MUNDO"



A Avoínha vai contar uma história, muito secreta, com muita magia. É para ouvir com toda, toda a atenção e guardar lá bem dentro do coração. Tem fantasia e tem verdade e a mistura destas duas talvez nos vá dar felicidade.
A história passa-se no Pedrógão e começa no lagar, mais propriamente no sobrado do lagar, naquele sobrado muito grande, que parece a barriga da baleia que engoliu o Jonatas há muitos, muitos séculos, ainda no tempo do Antigo Testamento, antes de nascer o Jesus. Se calhar o Padrinho velhinho, que já era Avô do Pai Avô, quando mandou fazer o lagar com aquele sobrado tão grande estava a pensar no Jonatas e por isso mandou pôr todas aquelas traves e barrotes, que parecem as costelas da baleia e que seguram o telhado há tantos anos e com tanta força que ele não está ainda, nem um bocadinho torto.
Lá, nesse sobrado, existem muitas maravilhas velhinhas. São maravilhas porque todas têm uma história linda para contar. Às vezes é bom ir até lá e ouvi-las: A cadeira de ajoelhar (genuflexório) da Tia Cândida conta a sua história como quem diz uma grande lenga-lenga. É que durante a sua vida ouviu tantos Padre-Nossos e Ave-Marias que ainda continua com aquele jeito: Santa Maria Mãe de Deus … a Tia Cândida era tão minha amiga … rogai por nós pecadores … ajoelhava-se na minha almofadinha, apoiava os braços na minha cabeça … agora e na hora … o terço dela fazia-me cócegas … Ámen. E as histórias daquele arcaz que guardou tantas preciosidades dentro da sua barriga, nem digo nada, davam para escrever um livro …
Mas hoje vamos contar a história duma pequena maravilha que deve lá estar no sobrado muito escondida, tão escondida que só os olhos da imaginação a vêm e os ouvidos das recordações e da fantasia a ouvem.
São uns sapatos lindos, da cor do luar do Pedrógão nas noites de lua cheia e de milhares de estrelas, enfeitados com as penas das cegonhas que por lá passam há centenas de anos, com solas fortes, tão fortes e tão rijas como as pedras da aldeia e da cruz à porta da Igreja, que só a Tia Filipa conseguiu partir num dia de muita valentia, e têm musica, uma música muito suave feita do canto de rouxinóis, cucos, popas, papa-figos e chocalhos de rebanhos, – tudo sons do Pedrógão.
Estes sapatos têm poderes especiais, andam no espaço e no tempo. Sabem o que isto quer dizer? Como quaisquer sapatos vão aqui, vão ali e vão além, mas mais do que quaisquer outros vão a ontem, vão a hoje e vão a amanhã.

E lá vai a história que tem três partes: uma passada num ontem de há 50 anos, outra num ontem de há cerca de 35 anos e a última nos dias do tempo presente.

Um belo dia, a Constancinha que é a menina mais pequenina da família e que é um macaco trepador como a Mãe dela, a Tia Filipa, resolveu fazer uma escapada até ao sobrado do lagar. Ficou encantada com aquelas maravilhas! Mas os sapatos, ai, os sapatos deixaram-na deslumbrada … Num abrir e fechar de olhos enfiou-os nos pés e sentiu-se transportada no espaço e no tempo: a viagem no espaço foi pequena, só até uma das janelitas do sobrado que dão para o pátio grande, que antigamente se chamava picadeiro, mas a viagem no tempo foi muito maior e a andar para trás, cerca de meio século. E que viu ela da janelita do sobrado? Um senhor, já duma certa idade, muito direito com um cajado na mão e um chapéu à “mezantina” a olhar para os seus cavalos que brincavam no picadeiro: o Ring, lindo cavalo castanho dourado que tinha sido montado pela Conchita Citron, a Miss, que era muito mansa e se agachava para se deixar montar, e outros cavalos, e uma parelha de machos e no meio deles o Zé Ramos que era pequenito e que era o cocheiro. Ao pé do senhor estavam dois rapazes, um que falava muito e tinha ar de muito entendido e outro mais calado que fez festas aos cavalos e depois se empoleirou em cima duma mó junto à parede do lagar a fazer qualquer coisa que a Constancinha não conseguiu perceber o que era. Na escada para a casa do caseiro estava uma menina já crescida que parecia ter algum medo dos animais e que clamava bem alto para que os irmãos a ouvissem: “Tenham cuidado, não se exponham, olhem que podem apanhar um coice”. Os sapatos, que também falavam (eram sapatos irreais), disseram à Constancinha quem eram aqueles personagens: o Padrinho que era o Avô do Pai Avô; o Tio Mário, o tal rapaz falador; o Pai Avô aquele que estava a fazer qualquer coisa que não se percebia bem o que era e a Tia Nina a menina das escadas, cheia de cuidados com os irmãos. Mas a Constancinha que era muito curiosa não descansou enquanto não descobriu o que fazia o tal rapaz, que era o Pai Avô em novo. Debruçou-se muito da janela, agarrou-se bem ao peitoril, espreitou, espreitou, ia perdendo os sapatos, quase caiu, mas à última hora eles valeram-lhe, seguraram-na bem, e ela conseguiu descobrir. Aquele rapaz tinha um canivete na mão e um bocadinho de madeira de buxo e estava a fazer uma coisa linda: uma gazelinha com uma corrente, tudo duma peça só, que ele queria oferecer a uma menina de quem gostava muito e que naquela altura ainda andava longe, por outras terras do lado de lá da serra. Sabem quem era a menina? São capazes de adivinhar? Era a Avoínha que ainda era uma rapariga nova e estava em Nelas, também a pensar no Pai Avô. A gazelinha era aquela muito linda que a Avoínha tem muito bem guardada e que só mostra aos meninos para verem com os olhos, sem porem as mãos para não estragar.

A Constancinha gostou tanto desta história, que, no dia seguinte, sem ninguém ver, convidou o João Maria (o neto seguinte, a contar dos mais pequenos) para ir com ela “ter nova aventura”. Ele não se fez rogado, gostava tanto de aventuras e de disparates. Muito sorrateiros lá se dirigiram ao lagar. Desta vez cada um embarcou em seu sapato. Como os pezitos ainda eram pequenitos, funcionou muito bem, os dois pés dentro de cada sapato, eles de cócoras e toca a andar. A viagem no espaço foi um pouco maior, até ao quintal do lado de lá. A viagem no tempo foi mais pequena, também andaram para trás, mas só um pouco mais de um quarto de século.
Tantos meninos que brincavam nesse quintal. Quem seriam? Contaram-nos, com a ajuda dos sapatos maravilhosos, porque a Constancinha e o João Maria ainda se enganavam
a contar tanto: um, dois, três, … sete, oito nove! Havia um rapazito mais velho, era o Tio Mário Alexandre, andava a brincar sozinho, à procura de pássaros, sardaniscas, rãs e gafanhotos. Gostava muito de bichos, ainda hoje gosta. No cantinho da Avó Céu estavam várias meninas: a Tia Branca, a Tia São José, a Tia Luísa, a Tia Filipa e a Tia Leonor, ouviam-se as gargalhadas da Tia Branca e apurando bem o ouvido os pequenitos conseguiram perceber a conversa: estavam a combinar fazer uma ceia nocturna: pediam borrachões à Ti Maria, rebuçados à Avó Céu, apanhavam tomates no quintal para comer com sal e depois, de noite, iam ao frigorífico, havia lá sempre restos apetecíveis ( mal elas sabiam que era a Tia Nina que lá lhos deixava quando adivinhava que ia haver ceia ). Depois, a ceia era lá em cima, no terraço do quarto delas, todas em camisa de dormir, pareciam fadas. Mais adiante a passear na alameda dos buchos, de mão dada iam duas pequenitas, tinham apanhados florinhas, riam-se muito e por lá andavam, eram a Tia Sofia e a Tia Isabel, muito amigas, andavam sempre juntas.
Na varanda que dá para o quintal estavam os Avós: a Avó Céu e o Avô Oliveira e no meio deles o bercinho com o Tio Gonçalo. O Avô, com muito cuidado, agitava uma fralda para que as moscas não tocassem no menino e a Avó Céu chamava pela Tia Maria e pedia-lhe que preparasse a merenda para aqueles netos todos.
A Constancinha e o João Maria andavam agora muito inquietos, montados nos sapatos espreitavam por todos os lados, parecia que procuravam qualquer coisa. O que seria que eles queriam? Mais uma vez lhe valeram aqueles sapatos maravilhosos que até sabiam falar:
Não procurem meninos, não vale a pena, ainda é muito cedo, o Tio Vasco ainda pertence ao reino dos sonhos, só daqui a alguns anos irá nascer.

E estamos agora nos dias do tempo presente. Os netos todos da Avóinha, os dois da aventura e mais todos os outros, do mais pequeno ao maior: a Beatriz, o Pedro, o Vasco Maria, a Madalena, a Assunção, a Margarida, o Francisco, o António, a Inês e o Sebastião depois de ouvirem esta história, cada um à sua maneira e de acordo com a sua idade fizeram uma romagem ao sobrado do lagar, ao tal que parece a barriga da baleia.
E que foram lá fazer? Os mais pequenitos procurar os sapatos maravilhosos, que não conseguiram encontrar porque eles só existiam na imaginação da Avóinha e os maiores pensar em outras histórias do presente e do futuro, do Pedrógão, histórias que a Avóinha não consegue nem imaginar.
Mas o que todos encontraram e fica aqui transcrito para que possa perdurar por muitos anos na memória dos meninos foi uma mensagem da Avóinha para todos os netos, bisnetos e trinetos:
“Lembrem sempre os que vieram antes de vós, não se esqueçam que eles vos deram origem, vos educaram, gostaram muito de todos e vos deixaram estes recantos e estas memórias para que tal como os vossos Pais, Avós, Visavós e Trisavós os preservem, os alindem, os cuidem e os transmitam aos outros que vierem depois de vós.”


Pedrógão de S. Pedro, Agosto de 2006


Avóinha Sãozinha

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