segunda-feira, 23 de março de 2009

E O COMBOIO LÁ VAI... E NÓS TAMBÉM:::

E O COMBOIO LÁ VAI... E NÓS TAMBÉM ...

Pouca-terra... Pouca-terra... Uhhh... Uhhh...
Pouca-terra... Pouca-terra... Uhhhhh...
Era assim que os comboios cantavam quando eu era pequenina.
Agora a cantiga é outra, mas também é bonita:
Vum... Vum... Tra...tará... Tra...tará...Tratá...
Vum... Vum... Vum... Tratá-Tratá... Vum... Vum... Tratará...
Quando eu era pequenina andava muito de comboio, agora, os menjnos quase não andam de comboio.. É pena, porque é muito bom andar de comboio.
Os comboios têm janelas grandes. Olhamos através delas e vimos os campos, os rios, as aldeias, as cidades, o céu e as nuvens. E quando os comboios não são de alta velocidade dá até para ver coisas mais pequeninas, como rebanhos, cavalos com os seus potros, vaquinhas a pastar, homens de biciclete pelos caminhos, barquitos a vapor nos rios e cegonhas e os seus ninhos na torre das igrejas e nos cabos de alta tensão.
Os comboios andam sempre pelos mesmos caminhos, as linhas do comboio, chamam-se caminhos de ferro, cantam sempre as mesmas cantigas, mas no seu cirandar há sempre coisas novas a descobrir.
Dentro dos comboios os salões das carruagens são grandes, têm muitos lugares e o tempo das carruagens corre mais devagar do que o tempo da rua. Dá para olhar para os nossos companheiros de viagem. Há pessoas grandes a conversar, uma avó a falar com o neto, um rapaz a jogar no telemóvel, lá no canto um senhor a trabalhar no seu computador, pessoas a ler, outras a dormir...
Às vezes apetece conversar com os vizinhos. Quando eu era pequenina metia conversa com toda a gente, mas agora, não dá jeito, nós, as pessoas grandes somos envergonhadas, só metemos conversa quando sentimos que outro qualquer está também cheio de vontade de falar connosco.
Parece-me que já descobriram que, eu, neste mesmo momento, estou a fazer uma viagem de comboio e que tinha muita vontade de comunicar com os meus netos. Como o não posso fazer directamente vou tentar escrever e guardar estas memórias para poderem ler mais tarde. Abana um bocadito, a letra fica feia, mas consigo.
A minha viagem é de Lisboa para Castelo Branco. O comboio é regional, dos que andam devagar e dão tempo para apreciar tudo.
Na estação de Santarem, que é muito bonita, com azulejos antigos, entraram no comboio muitos meninos, uns 50, deviam ser de um jardim escola e vinham com algumas educadoras. Quando entraram o ambiente mudou, deixaram de se ouvir as pessoas grandes, só se ouvia a “chilreada” dos meninos e por vezes as educadoras a mandá-los calar. Curiosamente, eu fiquei mais alegre, diverti-me a olhar para os meninos, a vê-los levantar, sentar, gesticular, olhar pelas janelas e “chilrear”... “chilrear”... “chilrear”...
Duas estações adiante saíram. Foi um reboliço, mas mal desciam do comboio rapidamente se organizavam em filas de dois, de mãos dadas, com as educadoras a orientar. Foi com pena que lhes disse adeus da janela. E as pessoas grandes comentaram: “Que sossego! Mas fazem falta!...”
Fiquei a pensar que estes meninos tiveram sorte, por terem a experiência duma viagem de comboio.
E pensei nos meus netos, nos netos de sangue e nos outros que eu não conheço mas que também são meus netos porque escrevo para eles e porque gosto de partilhar com eles estes momentos bons e estas alegrias. Gostava que todos fizessem uma viagem de comboio e reparassem nestas coisas bonitas que só se descobrem quando o tempo passa devagar.
E a minha viagem continuou... e eu tirei mais algumas notas:
Castelo de Almourol e a seguir sempre o rio Tejo, à minha direita. Algumas ilhotas, árvores, vegetação até à beira da água, um caminho suspenso, de madeira, que continua por aí fora, que depois já não é suspenso, mas lá vai... Castelo de Belver, mais árvores, muitas oliveiras, mais vegetação até mergulhar no rio.
E o comboio lá vai... Vum... Vum... Tra...tará... Tra...tará...Tratá...
sempre a par com o rio, até parecer, por vezes, quase cair nele. Algumas paragens, rio, pedras, casas em ruínas, uma truta a saltar na água e não se vê ninguém. Para onde irão as poucas pessoas que saiem do comboio?
Barragem do Fratel. O rio agora parece um lago, é mais largo e tem mais água, dois ou três barquitos, mas o mesmo sossego e quase a mesma solidão. Mais adiante as portas do Ródão: dois montes que chegam até ao rio e o fazem ficar mais estreito para se poder escapar por entre eles, é a força da natureza!
Ródão, uma terra grande, muitas casas, fábricas, armazens e a dominar a paisagem a gigantesca construção em ferro e alumínio que é a fábrica do papel.
Adeus rio. A viagem segue pelo meio dos campos. Estamos quase a chegar a Castelo Branco e a paisagem muda: estradas, automóveis, casas, muitas casas, barulho e movimento...
E as minhas notas acabam. Fico com um desejo no coração: Fazer esta viagem com os meus netos e pedir aos Avós dos netos que não conheço que os convidem e façam com eles uma qualquer viagem de comboio, no nosso Portugal, e que com eles descubram a maravilha das nossas paisagens e o prazer de deixar correr o tempo devagar.

Linha da Beira Baixa, 13 de Março de 2009
Maria da Assunção Ferraz de Oliveira
(Avóinha Sãozinha)