OS NATAIS DA MINHA INFÂNCIA
Agora, que tenho 12 netos, 65 anos e que começo a sentir a vida a escoar-se por entre os dedos das minhas mãos, quero, enquanto for capaz, deixar-lhes as minhas recordações.
Serra da Amoreira, Natal de 2002,
Avóinha Sãozinha
Fui sempre uma criança feliz. Senti-me sempre acarinhada e amada pela família e pelos que me rodeavam. Nunca tive fome nem frio, nem grandes desgostos. Era alegre, brincalhona, muito meiga e no geral bem sucedida naquilo em que me empenhava.
As minhas primeiras recordações de Natal, pelos 4 ou 5 anos, embora muito esfumadas, dão ainda para me lembrar do meu Avô, o Conde de Fijô, já doente, com uma bengala e a mexer-se com alguma dificuldade. Era muito meu amigo. De noite usava camisa de dormir e um barrete na cabeça.
Nessa altura o Natal passava-se em Paçô, S. João de Ver, próximo da Feira: A lareira da cozinha era muito grande, cabia lá debaixo um cadeirão em que o meu Avô se sentava e também me lembro do banquito em que eu gostava de me sentar. E lembro-me da Maria Couteira. Era velhota, usava saia rodada até aos pés e cozinhava num fogão de lenha que tinha um grande forno e que ficava, quando estávamos virados para a porta da rua, do lado direito, enquanto que a lareira era do lado esquerdo. A Maria Couteira deixava-me fazer cozinhados, nos meus caçoilos de barro, que a minha Mãe comprava na fábrica das panelas, que era lá perto da quinta. Tinha muitos, pequeninos, de todas as formas e feitios, que o oleiro (já não me lembro o nome dele) fazia, iguais aos grandes, para mim. Que bem me sabia a açorda e o arroz doce feito nos caçoilos e sobretudo a paciência da Maria Couteira a ajudar-me a fazer os meus petiscos. No Natal havia três mesas muito grandes lá em casa. Uma na sala de jantar com a família: muitos Tios ainda rapazes novos, a minha Mãe, o meu Pai, o Avozinho e a Avozinha. Não me lembro dos meus Tios já casados, o Tio Zé e o Tio António... se calhar não passavam lá o Natal. Outra mesa era na cozinha, em frente da lareira, também comprida, onde comia o pessoal, lembro-me sobretudo dum criado velhote, o Cardoso, que era o principal lá de casa, tinha uma barriga muito grande e o cinto a segurar-lhe as calças por baixo da barriga. Havia ainda outra mesa de pedra na rua, logo ao fundo das escadas da cozinha, aonde comiam os pobrezinhos que no dia de Natal apareciam ainda em maior número.
Depois o meu Avô morreu. Tinha eu 7 anos. E os Natais passaram a ser em Coimbra na Quinta do Espinheiro, onde agora é o Hospital da Universidade. Fazíamos sempre o Presépio em Nelas: era um Presépio grande com muitas figuras de barro, toscas, mas de muito encanto para mim. O Menino Jesus era feiinho, lembro-me de ter pena dele ser assim e de pensar que o Menino Jesus verdadeiro devia ser, de certeza, muito mais bonito. A cabana era sempre o caixote onde se guardavam as figuras, forrávamo-lo por dentro com papel prateado e por fora com musgo. Tinha três buraquitos, um no meio em cima e dois nos cantos atrás, era por onde enfiávamos três lâmpadas duma série de 18, lindíssimas, do feitio de bolas de bilhar e cada uma com uma bandeira pintada. Claro que no centro da cabana tínhamos sempre o cuidado de pôr a bandeira de Portugal e num dos cantos a bandeira brasileira. Lá longe, no sítio mais escondido, púnhamos a bandeira espanhola, porquê?, não sei, talvez, nessa altura, já andássemos às voltas com a História de Portugal. Aquelas luzes eram um luxo, nem o Presépio da Igreja de Nelas era tão bem iluminado. O Presépio fazia-se sempre na saleta, deve ter passado por todos os cantos e recantos que existiam Mas era sempre igual. As mesmas figuras (não sei porquê lembro-me especialmente da mulher a vender ovos sentada sobre os calcanhares), o castelo de papelão lá atrás donde saía uma estradita, feita de areia, por onde seguiam, muito solenemente, os três Reis Magos, o rio de papel prateado que tinha uma ponte de papelão e que descia por uma ribanceira a despenhar-se no lago que era um espelho que lá havia em casa, com moldura de prata, que, claro, ficava escondida debaixo do musgo. No lago punha-se um cisne, que não pertencia ao Presépio mas que lá ficava muito bem, porque para as crianças não contam as proporções. Chegou até a haver no tal lago uns peixes de plástico vermelhos, entusiasmo do Tio Zé António, embora contra a minha vontade, porque achava que os peixes não nadavam por cima da água..
Íamos sempre passar o Natal a Coimbra, mas às vezes só no dia de Natal de manhã, porque também me lembro de Consoadas passadas em Nelas. Numa delas até “vi” a asa do Menino Jesus a escapar-se pelo fogão da saleta. Foi numa daquelas consoadas em que a Avozinha morria e estalava para nos dar os presentes e não conseguia esperar até ao dia seguinte. Foi pôr os presentes nos sapatos e disse-nos: “Venham meninos, parece-me que oiço o barulho do Menino Jesus a descer pela chaminé.” Corremos a toda a pressa, eu à frente de todos e “vi” a asa do Menino Jesus, branquinha, com penas lindas a desaparecer pela chaminé. O meu Pai estava sentado a fazer paciências ao pé do fogão. Perguntei-lhe entusiasmadíssima: “Pai, Pai, viu o Menino Jesus?” “Não, Filha, estava aqui distraído com as cartas.” Que oportunidade o meu Pai perdeu!... Fiquei triste por ele.
O primeiro desgosto relacionado com o Natal tive-o aos 9 anos quando já interna no Colégio do Rosário no Porto, soube que afinal não era o Menino Jesus que trazia os presentes. À pergunta de uma Irmã: “O que é que vos deu o Menino Jesus?” Uma companheira “esperta” respondeu: “Ora, ora, sei muito bem que são os Pais”. Ainda quis não acreditar, mas as explicações da Irmã dizendo que o Menino Jesus é que dava saúde aos Pais para eles poderem ter dinheiro para comprar os presentes, desmoronaram o meu sonho tão bonito. Nessa noite, sozinha na cama, chorei.
Os Natais em Coimbra, eram um entusiasmo. Cada ano havia mais primos. Dormiam lá em casa os do Tio Alexandre, os do Tio Vasco, os do Tio Pedro, que durante muitos anos lá viveram, e nós. Os outros que viviam em Coimbra, os do Tio Zé, do Tio João e do Tio Manuel vinham jantar na noite de Natal e almoçar no dia seguinte. Só havia quatro mais velhos, depois éramos nós e depois muitos, muitos, cada vez mais pequenos.O meu preferido era o António, das Sete Fontes, sabia andar tão bem de biciclete! era meu amigo, dos mais velhos era o que me ligava mais. Havia um Tio que lhe chamava “Mil Diabos”, nunca percebi porquê, a minha Mãe dizia que ele era “um coração de ouro”. O reboliço era muito: as corridas pelo corredor adiante, até ao quarto do arco, a mesa redonda muito grande, na copa, onde se sentavam os primos todos, a sala de trabalho onde fazíamos muitas brincadeiras, a lâmpada que subia e descia e nós gostávamos de puxar, a braseira com uma armação de arame por cima, para secar fraldas e meias e aquele armário muito grande onde eu sonhei fazer uma casinha de bonecas, mas que estava sempre fechado. A cozinha com o fogão de lenha, os petiscos, o peru assado, a Alice a cozinhar,a minha Mãe a fazer as coisas mais delicadas, a Avozinha a dar ordens com o seu avental preto com grandes bolsos onde havia muitas chaves. A Casimirona, era assim que ela gostava que lhe chamassem, lembro-me dela sempre muito velha, um bocado rabugenta, mas muito amiga de todos. Já tinha sido criada da nossa Bisavó e até se lembrava do casamento da minha Avó e de ter criado todos aqueles “meninos”. Não se enfeitava a casa, não havia bolas douradas nem pinheiro de Natal. Só um centro de mesa com cheirinho a Natal, naquela mesa tão grande. Também não se fazia Presépio, porque havia um, antigo, dentro de um móvel, com paredes de vidro, com muitas figuras, muito bonitas, muito perfeitas mas onde não podíamos mexer. Estava na sala de tijolo, que era uma sala que estava sempre fechada, que tinha uma lareira que nunca me lembro de ter visto acesa e onde púnhamos os sapatos na noite de Natal. Lembro-me de uma vez o Tio Manuel ter posto uma bota de cano alto, da caça, dizia ele: “para ver se o Menino Jesus me dá mais presentes”. No dia seguinte tinha a bota cheia de nabos, cenouras e cebolas. Foi uma risota. De todos os Tios havia uma que era a minha preferida, aTia Né. Gostávamos muito dela, cheirava muito bem, tinha peles muito quentinhas e macias, tinha o cabelo louro, era muito bem posta, e até a nossa Avó fazia mais cerimónia com ela do que com as outras. Dava-nos presentes de que gostávamos imenso. Não posso esquecer tantos livros que me deu e me proporcionaram horas maravilhosas de sonho e aventuras:: “Histórias da D. Redonda e da Sua Gente”, “Emílio e os Detectives”, “Em Família”, “Sem Família”, “Os Esquimós”, “Os Lapões”, “Homens Brancos nos Trópicos”, “Ivanhoe”, “O Talismã”,”Fabíola”, etc., etc. Quando a Tia Né e o Tio António chegavam naquele carro que fazia muito barulho (era a gasogéneo), com malas bonitas, manta de viagem muito quentinha e cheios de embrulhos com presentes, era uma festa!
A missa do Galo era na Igreja de Santo António dos Olivais. Subíamos, a correr, aquele escadaria grande a espreitar as capelinhas que tinham cenas, com figuras em tamanho natural, parece-me que era a Via Sacra. A Igreja era pequena, tinha muita gente, muita luz, muitos cânticos. Tocava o sino. O Menino Jesus nasceu. Boas-Festas! Boas-Festas!
E depois a minha Avó morreu. Acabou-se a Quinta do Espinheiro. Nunca mais lá entrei e ainda hoje quando passo no sítio onde era a casa, olho para o outro lado. E também se acabaram os Natais da minha infância. Cresci. Todas estas recordações me ajudaram a crescer. Todas guardei no meu coração. Agora é com muito carinho e muito Amor que as partilho com os meus Netos e com os Filhos também, apesar de já serem crescidos.
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